O Mercador de Fantasia


O bom Poeta que jamais se cansa,
Até dormindo cria um Canto novo.
Entre os anelos e um passo de dança,
Acena aos deuses e serena o povo.

Essa figura não raro bizarra
Que empunha a lira e canta seu cordel,
Oculta o pejo e solta a voz na marra
Para a platéia tanta vez cruel...

Se escuta apupo, finge que não viu
E faz mesura para o aplauso ameno
Enquanto enxuga a lágrima sutil
E morre um pouco do próprio veneno.

Pobre mambembe tão cheio de brio,
Que boquirroto, conta seus segredos,
Fecunda versos com seu melhor cio,
Chuleia rimas em seus tolos medos.

Mascateando suas libações,
O Mercador caminha e faz pregão; 
Em seu varejo, invoca até Camões,
Entre as coxias, guarda o coração!

SYLVIA COHIN
Porto, 24.05.2008

Etérea



Sou viajante que esvoaça ao vento, 
De Zéfiro, frescor celestial 
A navegar em rimas que eu invento 
Em récitas pro Cosmos imparcial.

Vagueio livre na amplidão do espaço 
De onde ponteio meu encantamento 
E em sintonia, de mim me desfaço, 
Só pra cantar contigo o teu lamento...

Faço-me brisa morna que te afaga 
E entre volteios essa dor transpasso 
Rindo da vida sempre tão aziaga, 
Aqui e ali, ato e desato um laço...

Com paciência e muita simetria, 
Vou escrevendo as páginas da saga 
Colando risos sobre o que agonia, 
Como se fora o sopro que embriaga.

Mas a verdade é esta afirmativa: 
De ti sou parte, como já sabias, 
E porque ando às vezes tão furtiva, 
Fica somente o rastro das folias...

"Assim se vive" - como se adjetiva - 
E pouco importa se pareço aérea! 
Essa junção que sabe a compulsiva, 
É nossa carne que se fez etérea.

SYLVIA COHIN 

Saudade



Hoje havia uma saudade
fazendo pouco de mim
Daquelas que o peito invade
numa ousadia sem fim...

Me atiçava e se escondia
entre as bordas da memória
Vendo-me aflita, sorria,
com seu ar de grande glória!

Oh tirana, és impiedosa,
trituras meu coração,
Por quê insistes, tão teimosa,
em tanta perseguição?

Quero ao menos respirar
na ilusão de que partiste
E já não pairas no ar
com meus ais na mão em riste!

Prometo que te conservo
porque sei que ninguém há-de
Escapar de ser teu servo,
pois quem ama, tem saudade!

Na verdade eu te confesso,
não posso viver sem ti...
Porque na saudade eu meço,
todo amor que já vivi...

SYLVIA COHIN

À Deriva...




Flanar imune à voz d'alguns conceitos 
- algemas e mordaças tão mesquinhas - 
que vendem por aí como ‘insuspeitos’, 
e destapar ‘verdades’ tão daninhas. 


Avanço, e sem temer, trespasso grades, 
liberta como quem o Céu devassa. 
- Que bem longe esteja do Reino de Hades! - 
E resoluta, eu nego o que é fumaça. 


Quero no leito manso do Confim, 
o coito co'essa Luz que tanto exalto! 
E a salvo das ‘premissas de festim’, 
ouvir a voz serena de outro Arauto. 


Buscar essa Verdade, mesmo crua, 
que a dormitar me instiga, tão esquiva, 
e assim difusa, incita seminua, 
caminha por aí... solta... à deriva... 


Gestar certezas é tarefa dura, 
bosque de erros que me desafia, 
portanto, eu flano sempre à procura, 
como quem caça... a caça que porfia! 

Sylvia Cohin

Um Breve Suspiro




Tão sábio o Tempo que não se repete, 
guarda consigo o ciclo dos encantos 
que de vividos, 
fazem-se tantos, 
sem que com isso a alma se aquiete. 


É que no peito há sempre bem guardado 
algum amor que já se fez passado 
e de tão forte, 
mesmo embaçado, 
mantém-se vivo até depois da morte. 


Tão sábio o Tempo, não lhe dá ouvido. 
Caminha alheio, tão despercebido 
que sem aparte, 
sem alarido, 
é mero palco, onde destarte, 


Tudo é apenas um breve suspiro 
dum Tempo que ofegante, eu transpiro. 
E não importa 
se descortino 
quanto é fugaz, e sigo quase absorta, 
enquanto o Tempo escreve meu destino.

Sylvia Cohin

O Convite


O convite 
Por Oriah Mountain Dreamer

Não me interessa o que você faz para viver. 
Eu quero saber qual a sua dor, 
E se você se atreve a sonhar em encontrar 
Anseio do seu coração.
Não me interessa quantos anos você tem. 
Eu quero saber se você se arriscaria parecer com um louco 
Por amor, por seu sonho, 
Pela aventura de estar vivo.
Não me interessa saber que planetas estão em quadratura com sua lua. 
Eu quero saber se você tocou o centro de sua própria tristeza, 
Se você tem sido exposto pelas traições da vida, 
Ou se tornou murcho e fechado por medo de mais dor.
Eu quero saber se você pode sentar-se com a dor, 
Meu ou o seu próprio, 
Sem se mover 
Para escondê-la ou disfarçá-la ou corrigi-lo.
Eu quero saber se você pode ser com alegria, 
Meu ou o seu próprio, 
Se você pode dançar loucamente 
e deixar que o êxtase te encha até às pontas dos dedos das mãos e pés 
Sem a cautela de ser cuidadoso, ser realista, 
ou de lembrar das limitações de ser humano.
Não me interessa se ​​a história que você está me dizendo é verdade. 
Eu quero saber se você pode desapontar alguém para ser fiel a si mesmo, 
Se você pode suportar a acusação de traição e não trair sua própria alma. 
Eu quero saber se você pode ser infiel e, portanto, ser confiável.
Eu quero saber se você pode ver a beleza 
Mesmo quando ela não é bonita todos os dias, 
E se você pode conectar a sua vida 
De sua presença.
Eu quero saber se você pode viver com o fracasso, 
Seu e meu, 
E ainda estão de pé à beira de um lago e gritar para o prateado da lua cheia, 
"Sim!"
Não me interessa saber onde você mora ou quanto dinheiro você tem. 
Eu quero saber se você pode levantar depois de uma noite de tristeza e desespero, 
, Exausto e ferido até os ossos 
E fazer o que precisa ser feito para as crianças.
Não me interessa quem você é, como você chegou até aqui. 
Eu quero saber se vai permanecer 
No centro do fogo comigo 
E não recuar.
Não me interessa onde ou o que ou com quem você estudou. 
Eu quero saber o que te sustenta 
A partir do interior 
Quando tudo mais desmorona.
Eu quero saber se você pode estar sozinho 
Com você mesmo, 
E se você verdadeiramente gosta da companhia que mantenha 
Nos momentos vazios.

Texto em Inglês traduzido para Português

Nosso medo mais profundo...



Nosso medo mais profundo não é o de sermos inadequados. 
Nosso medo mais profundo é que somos poderosos além da medida. 
É a nossa luz, não nossa escuridão 
Que mais nos apavora.
Nós nos perguntamos: 
Quem sou eu para ser brilhante, maravilhoso, talentoso e fabuloso? 
Na verdade, quem é você para não ser? 
Você é um filho de Deus.
Bancar o pequeno 
Não serve ao mundo. 
Não há nada de iluminado em se encolher 
Para que outras pessoas não se sintam inseguros ao seu redor.
Todos nós somos feitos para brilhar, 
Como as crianças. 
Nascemos para manifestar 
A glória de Deus que está dentro de nós.
Não é só em alguns de nós; 
Está em todos nós.
E quando deixamos nossa própria luz brilhar, 
Inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. 
Como estamos libertamos do nosso próprio medo, 
Nossa presença automaticamente liberta os outros.

Marianne Williamson
Texto em Inglês traduzido para Português

Seus Olhos...


Seus olhos - se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou
Não tinham luz de brilhar.
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, num só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

Almeida Garrett 

Não Te Amo


Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n'alma - tenho a calma,
A calma - do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai! não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

Gozo e Dor


Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.

Almeida Garrett

Este Inferno de Amar...


Este inferno de amar - como eu amo!-
Quem mo pôs n'alma... quem foi?
Esta cham que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói-
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonh talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão seran a dromi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! desperatar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett 

Destino


Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Floresce!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

Almeida Garrett 

Retrato próprio...


Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste da facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Bocage 

Proposição das rimas do poeta


Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Bocage

Visão Realizada...


Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: <<Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

>>Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.>>

Disse; e eu dando um suspiro: <<Ah, não m'espantes
Coa a vista dessa fúria!... Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!>>

Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!

Bocage

O Suspiro


Voai, brandos meninos tentadores,
Filhos de Vénus, deuses da ternura,
Adoçai-me a saudade amarga e dura,
Levai-me este suspiro aos meus amores:

Dizei-lhe que nasceu dos dissabores
Que influi nos corações a formosura;
Dizei-lhe que é penhor da fé mais pura,
Porção do mais leal dos amadores:

Se o fado para mim sempre mesquinho,
A outro of'rece o bem de que me afasta,
E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:

Quando um deles soltar na esfera vasta,
Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho;
Eu sou tão infeliz, que isso me basta.

Bocage 

O autor aos seus versos...


Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz e tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.

Bocage 

Em louvor do grande Camões


Sobre os contrários o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedónio corte
Coa fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.

Bocage 

Esperança Amorosa


Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz! --- Longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir: porém segredo!

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Quem nem quero que o saiba o pai dos numes:

Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque, se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

Bocage

Olhos Verdes


São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp'rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

Gonçalves Dias

Meu Anjo, Escuta


Meu anjo, escuta: quando junto à noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exala;
Na voz da brisa quem murmura e fala
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Quando tu sentes lutuosa imagem
D'aflito pranto com sombrio véu,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho? — Quem te pinta amores
Dum puro céu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém te acorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silêncio teu,
Quando tua alma noutros mundos erra,
Se alguém descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém se aflige de te ver chorosa,
Se alguém se alegra co'um sorriso teu,
Se alguém suspira de te ver formosa
O mar e a terra a enamorar e o céu;
Se alguém definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu! 

Gonçalves Dias

A Tempestade


Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
Que eram belas,
Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.

Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar s’encapela
Já pronta a rugir!
Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.

Fogem do vento que ruge
As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio
Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista
Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e ouco
Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.

Nos últimos cimos dos montes erguidos
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.

Remexe-se a copa dos troncos altivos,
Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.

Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.

Inda ronca o trovão retumbante,
Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco,
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.

Deixando a palhoça singela,
Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.

Cresce a chuva, os rios crescem,
Pobres regatos s’empolam,
E nas turvam ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.

Mas ai do desditoso,
Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!

Porém no ocidente
S’ergue de repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Qu’imitam as flores
Que sembram primores
Dum novo arrebol.

Nas águas pousa;
E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,
Mais desbotado,
Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.

Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai. 

Gonçalves Dias
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